Entre o não lugar e o reconhecimento
- infoturbantese
- 28 de abr. de 2021
- 4 min de leitura
Em outubro de 2010 desembarquei pela primeira vez em solo francês. Eu havia concluído a graduação em Ciências Sociais, economizado dinheiro do estágio e contava com a ajuda da minha família para realizar um sonho: aprender a língua de Flaubert e ingressar em um mestrado. Naquela época, aos 22 anos, eu começava a entender as complexidades de ser uma jovem mulher negra no Brasil, mas não fazia ideia de como isso seria vivenciado em outro país. Muito menos o quanto essa experiência seria determinante para que eu me tornasse a pessoa que sou hoje.
Pertenço no Brasil à classe média. Cresci em São Paulo e no interior, e tive diversas oportunidades e privilégios ao longo da vida. Também cresci sabendo que não era como as demais meninas da escola: eu era a menina do cabelo ruim, do cabelo que encolhia sem motivo, a choquito, feijão. Quando pequena, eu percebia que isso acontecia por conta da minha pele, mas não entendia o porquê do desprezo. Quando me tornei adolescente e jovem adulta, meu corpo passou a ocupar o lugar do desejo proibido, um corpo objeto. Eu me tornei a morena cor do pecado. Além disso, por não ser negra retinta, tinha constantemente meu autorreconhecimento como mulher negra questionado. O desprezo e objetificação, a relativa aceitação social em função de classe e esse não reconhecimento me marcaram.
Mas o olhar mais apurado para a complexidade dessas tramas foi algo que adquiri com o tempo. Quando cheguei na França fui inserida na categoria métisse. “Papa Français, Maman Martiniquaise” ou “C’est qui le noir dans ta famille?” eu ouvia. Me incomodava a categoria mestiça porque ela me empurrava para um embranquecimento que não correspondia às minhas vivências nem à como eu me identificava. Além do desconhecimento da complexidade das relações raciais no Brasil parecia haver, em certos momentos, uma inconsciente tentativa de me dizer não se preocupe, você não é tão negra assim. O racismo na França, e posteriormente na Suíça, para onde segui no mestrado em sociologia, me empurrou novamente para a necessidade de autoafirmação. Me incomodava também a hipersexualização do meu corpo, dos meus traços. O charme sedutor e redutor atribuído ao meu léger accent. Me lembro de inúmeras discussões nas quais eu repetia o quão reducionista era a leitura que faziam sobre mim. Por diversas vezes, chegaram a me falar que em África eu não seria considerada negra. Isso me feria. Apesar desse não lugar e talvez justamente por causa dele, foi nessa experiência fora do Brasil que pude retornar às minhas origens e firmar minhas raízes. Eu lia, estudava e observava como as pessoas transitavam na cidade. Como pessoas negras, latinas, árabes, asiáticas e brancas me viam.
Genebra, cidade de imigrantes, possibilitava uma multiplicidade de culturas. A cidade também possuía maior mobilidade social, e não era incomum ver pessoas de diversas etnias em todos os lugares (escolas, restaurantes, bares, museus). Apesar da menor quantidade de pessoas negras do que no Brasil, foi lá que as vi ocupando os mais diferentes cargos. Essa diversidade me possibilitou perceber a variedade de leituras de mundo, entendimentos sobre racismo, xenofobia, machismo. Todos esses fios invisíveis a criar fronteiras concretas.

Antonio Mora - mylovt.com
Simbolicamente, por uma mistura de acaso e destino, foi em Genebra em 2013 que minha chapinha quebrou. Eu alisava o cabelo havia quatro anos e lembro do estalo elétrico no momento em que ela queimava e da palavra que me veio em seguida: finalmente. A chapinha quebrada, uma espécie de libertação me sendo outorgada. Foi só mais tarde que percebi que eu já estava, internamente, livre.
As raízes do meu cabelo cresciam enroladas enquanto eu enraizava meu lugar no mundo. Em Genebra, diferentemente do que viviam e vivem meninas/os durante a transição capilar no Brasil, ninguém se importava com meu cabelo. Encontrei uma liberdade para ser eu mesma e passei a me importar menos com os que insistiam em me embranquecer. Pontuava as situações de racismo que vivenciava e/ou presenciava: no trabalho, na faculdade, nas relações interpessoais. Escolhi no mestrado estudar a percepção das mulheres brasileiras sobre o exame papanicolau, o que me levou ao feminismo e a interseccionalidade. Dois pilares que me apontaram o que era ser uma mulher brasileira da afrodiáspora.
Em 2015 voltei para o Brasil consciente das leituras que ao longo de toda a vida fizeram sobre mim, minha família e meu corpo. Voltei com uma maior compreensão do lugar que ocupo, e sei que será frequentemente questionado.
Comecei a trabalhar com projetos sociais e os recortes de classe/raça novamente se impuseram, minha identidade e presença sutilmente questionados. Certa vez, em uma das inúmeras discussões sobre racismo, uma colega de trabalho me disse que provavelmente as pessoas não me vêem como negra nos lugares que passo. Mas na prática me vêem: não sou a coordenadora ou a responsável por projetos. Sou a cuidadora, a faxineira, ou aquela que tem a fala interrompida. Sou a pessoa que não esperam em reuniões e muito menos aquela que supõem que fale inglês, francês ou que conduzirá a apresentação. É para mim que dizem eu achava que você fosse diferente, quando me encontram pessoalmente após trocas de email. Constantemente apagada e lembrada da minha negritude, conforme convém. Ainda que meu lugar de classe me possibilite maior mobilidade social, meu corpo negro, nunca será branco.
Ter ido para França e feito mestrado em Genebra me ajudaram a compreender as estruturas raciais do Brasil. Essa experiência contribuiu para que eu seja, hoje, capaz de enxergar as linhas do racismo, mesmo que não seja capaz de desfazer todos os seus nós. Hoje tenho consciência que irei a vida inteira transitar por essas linhas. Inúmeras vezes serei empurrada para o não lugar, reiteradamente o mesmo ponto de autoafirmação, em uma luta constante. Mas, a cada volta, a cada retorno, carregarei comigo a certeza de estar fazendo esse caminho não só por mim, mas por todas aquelas e aqueles que virão depois.
Concluo contando que dois anos após meu retorno ao Brasil, em 2017-2018, recebi uma bolsa para fazer um estágio de dois meses de pesquisa na França. Nessa retorno, convivi com mulheres e homens africanos imigrantes, que me acolheram como irmã. E há algo nisso que transcende a palavra.
Fotos: Isabela Vieira Bertho, arquivo pessoal.
Kommentit