Carolina Maria de Jesus - A fome também é professora.
- infoturbantese
- 15 de mar. de 2021
- 4 min de leitura

Lembro de muito cedo começar a escrever em diários. De querer ser escritora, publicar. Mas, como tantos outros desejos, esse ficou escondido nas páginas dos cadernos que me acompanham. É recente meu reencontro com esse desejo, e mais recente ainda o despir da vergonha de ser lida, pois quem sou eu para querer escrever? Mas também, quem sou eu para não escrever? Sei que se hoje a terra torna-se fértil para minhas raízes se expandirem, é porque antes de mim houveram mulheres a laborar o chão.
Hoje, Carolina Maria de Jesus completaria 107 anos. A escritora brasileira que recebeu o título de Doutora Honoris Causa em fevereiro de 2021, fez o contrário do que se esperava - e ainda se espera - das mulheres negras e periféricas no Brasil. Nascida em Sacramento - MG em 1914, somente 26 anos após a abolição da escravatura (abolição essa que não promoveu inclusão e reparação), Carolina Maria de Jesus estaria fadada a repetir a vida de tantas mulheres que vieram antes e depois dela. Entretanto, e aqui sem fazer apelo à meritocracia, mas dando valor à sua subjetividade, uma força - estranha, como canta a música de Caetano, mas que prefiro na voz de Gal - a levou muito além das expectativas e determinações para as mulheres da época. Em especial das mulheres negras e pobres.

Collection IMS

Após uma infância e adolescência com muita dificuldade em Minas Gerais, Carolina se muda para São Paulo em 1948, e passa a residir na favela do Canindé, no centro da capital paulista. Ela se torna catadora de papel e faxineira para poder sobreviver. Já possui três filhos quando escreve seus diários, com trechos que serão publicados no jornal Folha da Noite em 1958, no jornal O Cruzeiro em 1959, mas que em 1960 serão lançados sob o título Quarto de Despejo: diário de uma favelada, seu livro mais conhecido.
Carolina constrói uma narrativa que é antítese das categorias hegemônicas da literatura (ainda nos dias atuais). Mulher, negra e pobre, escrever é romper com a constante tentativa de ser encerrada em um quarto de despejo, sem voz. Carolina, ao fazer uso da palavra escrita, realiza aquilo que até hoje contraria as estruturas sociais vigentes e alcança certa ascensão social através da literatura. Ela apresenta à sociedade brasileira uma outra história do Brasil e das grandes cidades. Essa da pobreza, da fome e da invisibilidade das pessoas que residem no coração da cidade. Com uma narrativa crua, retira o véu do que está diante dos nossos olhos. O livro Quarto de Despejo, com 100 mil exemplares vendidos no primeiro ano, foi traduzido em 14 idiomas e Carolina se tornou mundialmente conhecida.
Sua obra, entretanto, não se resume a esse livro. Ela publica ainda mais 3 romances em vida, e 5 livros póstumos também são publicados. Ainda que a narrativa da vida na favela tenha marcado sua estréia, a obra de Carolina não se limita a esse tempo-espaço, mas carrega em si imaginação e características literárias próprias. Em 1977, Carolina morre de uma crise de asma no sítio para o qual havia se mudado em Parelheiros, São Paulo.
Em um país onde a literatura é desvalorizada e o hábito da leitura desprezado, Carolina realizou e realiza um feito inédito: torna-se lida, conhecida, referência. Em um país de escritores homens, Carolina vive e nos influencia através dos seus livros.

Acervo digital de Letras UFF Carolina Maria de Jesus
São muitas as camadas que me separam de Carolina. Eu, que tive a sorte de ter uma vida confortável e com certos privilégios (herdados de pais, que por sua vez não tiveram tantos privilégios), nunca vivi a pobreza ou passei fome. Porém, até hoje mulheres negras de diferentes classes sociais lutam para legitimar seus sonhos, para acreditar em seus sonhos. Isso se torna ainda mais difícil para as mulheres negras pobres, às quais a possibilidade de sonhar é frequentemente roubada e questionada.
Aqui, e é importante ressaltar, não comparo meu caminhar com o de Carolina, pois sei somente ser possível que meus pés toquem o caminho, porque antes de mim ela o abriu. Também não digo que serei como ela, escritora talentosa e conhecida. Quem sou eu para escrever? É no reverberar das palavras de mulheres como Carolina que me firmo para seguir, me agarrar na possibilidade da escrita e da existência através da palavra. É fundamental ter referências. É fundamental ter referências de mulheres negras para sonhar.

Colagem por Isadora Daurizio @colagemruim
Embora os desafios sejam imensos e a trajetória (minha e de tantas mulheres) ainda permaneça imprecisa, é preciso celebrar Carolina. É necessário que todas as vozes se unam para homenagear Carolina Maria de Jesus, essa mulher que abriu caminhos, ainda que insistam em fechá-lo, encobri-lo de mato e lixo. Hoje é dia de agradecer pela coragem e ousadia de Carolina e de todas nossas ancestrais que possibilitam que nós mulheres - e nós, mulheres negras - também possamos vislumbrar um outro entardecer.

Isabela Vieira Bertho é cientista social, mestra em sociologia pela Universidade de Genebra e desde sempre trabalha com projetos sociais. Amante da literatura, tem ao longo do último ano mergulhado cada vez mais no universo da escrita. Ps: não nega uma taça de vinho ;)
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